Artigos de Opinião

Uma Nova Lei Para Induzir Um Novo Conjunto De Práticas Nas Relações Entre Fornecedores e Distribuidores

Pedro Pimentel

 

No passado dia 27 de Outubro foi publicado o Decreto-Lei n.º 166/2013, que aprova o regime aplicável às práticas individuais restritivas do comércio, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 31/2013, de 10 de Maio, autorização legislativa que, recorde-se, foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República.

O novo diploma revê uma legislação - o DL 370/93 – que tinha já 20 anos e estava totalmente desadequado da realidade actual do mercado e do formato com que, hoje-em-dia, se desenvolve o relacionamento entre fornecedores e distribuidores.

É também importante salientar que todo o processo de revisão se desenvolveu no seio da Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Alimentar (PARCA), onde estão representados produtores (CAP, CNA e Confagri), transformadores (CIP, FIPA e Centromarca) e distribuidores (CCP e APED), sendo que todos participaram activamente neste dossier e, simultaneamente, nenhuma destas entidades pode argumentar com o desconhecimento ou surpresa relativamente ao conteúdo da nova legislação.

O 'ESPÍRITO' DO LEGISLADOR

Lendo-se, de forma atenta, o preâmbulo do novo diploma, torna-se mais simples perceber qual o racional seguido pelo legislador na elaboração do novo diploma, facilitando uma melhor interpretação dos objectivos prosseguidos com as alterações introduzidas a nível do articulado.

Assim, a transparência nas relações comerciais e o equilíbrio das posições negociais entre agentes económicos são fundamentais para a concretização de desígnios constitucionais, casos do direito fundamental à livre iniciativa económica ou da garantia de uma equilibrada concorrência entre as empresa, sendo que cabe ao Estado estabelecer os mecanismos que assegurem o cumprimento e impeçam a distorção destes princípios. Por outro lado, os constrangimentos que conduziram à aprovação do Decreto-Lei n.º 370/93 mantêm-se e em alguns casos, aprofundaram-se com a evolução significativa do sector do comércio. O legislador considera, desta forma, que o esforço para alcançar eficazmente os objectivos de equilíbrio nas relações comerciais e da sã concorrência depende da aprovação de regulamentação pela Administração mas também de soluções de índole consensual.

O novo diploma procede à revisão do regime jurídico das práticas individuais restritivas de comércio, clarificando a sua aplicação e tornando suficientemente dissuasor o seu incumprimento. Aumentam-se as penalizações pela violação do disposto, seja pelo agravamento dos montantes das coimas, seja pela possibilidade de adopção de medidas cautelares, seja ainda pela possibilidade de sanções pecuniárias compulsórias. 

Clarifica-se, por outro lado, a noção de venda com prejuízo, facilitando-se a interpretação e fiscalização do preço de compra efetivo considerando os descontos diferidos no tempo e facilitando-se, também, a determinação do preço de venda considerando os descontos concedidos a esse mesmo produto mesmo que consistam na atribuição de um direito diferido.

Densifica-se o conceito de práticas negociais abusivas, identificando expressamente algumas práticas consideradas abusivas (por exemplo, alterações retroativas de contratos) e proibindo-se, ainda, práticas no sector agro-alimentar, quando o fornecedor seja micro ou pequena empresa, organização de produtores (OP) ou cooperativa.

Transfere-se a competência para a instrução dos processos de contraordenação da Autoridade da Concorrência para a ASAE e estabelece-se que a DGAE, em articulação com a ASAE, elabora um relatório no final do segundo ano, do qual deve constar a avaliação do mecanismo previsto para a verificação da venda com prejuízo, nos casos em que o desconto é diferido.

Finalmente, consagra-se a institucionalização da autorregulação nesta área, definido-se, desde logo, as condições básicas de negociação: reforço da transparência, assegurar a não discriminação e assegurar a reciprocidade entre parceiros, muito em especial quando estejam em causa relações comerciais fora do sector agro-alimentar, e dentro deste, quando envolva fornecedores de média e grande dimensão. O legislador considera, ainda, que a autorregulação será mais efectiva e eficaz se incluir soluções credíveis de monitorização e resolução de conflitos.

ALTERAÇÕES MAIS RELEVANTES DO NOVO DIPLOMA

Compreendido o ‘espírito’ do legislador, indico aquelas que, em nossa opinião, são as alterações introduzidas na nova legislação mais relevantes e com impacto mais favorável para as empresas fornecedoras: 

  • o aumento exponencial das contra-ordenações, de um limite máximo de 15.000 € para 2,5 milhões de euros, traduzindo uma maior adequação à realidade de mercado e conferindo-lhes um mais forte e mais efectivo poder de dissuasão;
  • as condições financeiras ou de outra natureza devem ser reduzidas a escrito, sob pena de nulidade
  • uma melhor definição do Regime de Vendas com Prejuízo, tornando inequívoca a respectiva aplicação no caso dos descontos diferidos e tornando mais claras as definições de preço de compra e preço de venda para efeitos da aplicação desse Regime; entre as situações que poderão justificar a venda com prejuízo (ameaça de deterioração, valor comercial afectado,…) deixa de constar o “alinhamento de preços”
  • uma melhor especificação do conceito de Recusa de Venda de Bens ou de Prestação de Serviços, sendo que foram adicionadas às causas justificativas de recusa a existência de acordos de distribuição exclusiva para determinado território, a protecção da propriedade intelectual ou a dificuldade anormal de venda ou a prestação por motivos de força maior, nomeadamente em consequência de greve; 
  • a densificação dos conceitos incluídos no quadro das Práticas Negociais Abusivas, sendo que para um conjunto relevante das práticas identificadas a proibição é estabelecida para todos os sectores de actividade e para todas as tipologias de empresas;
  • a aglutinação - num único organismo (ASAE) - de todos os aspectos relativos à implementação, monitorização, fiscalização e aplicação da nova legislação;
  • a introdução de uma cláusula de revisão obrigatória dos contratos de fornecimento em vigor, referindo que os mesmos cessam se no prazo definido não forem revistos e compatibilizados com a nova legislação;
  • uma definição mais assertiva da forma de aplicação das medidas cautelares, sendo que a entidade fiscalizadora [a ASAE] pode determinar, com caráter de urgência e sem dependência de audiência de interessados, a suspensão da execução de uma prática restritiva do comércio susceptível de provocar prejuízo grave, de difícil ou impossível reparação, a outras empresas, sempre que constate que existem indícios fortes da sua verificação, ainda que na forma tentada, sendo que se as medidas cautelares não forem acatadas estão previstas sanções pecuniárias compulsórias
  • a indução do processo de autorregulação estabelecido nacionalmente e de forma complementar à nova legislação,  sendo que o diploma destina ao financiamento da autorregulação parte do montante das coimas resultantes de infracções ao novo regime legal.

Ao invés, o diploma não recolheu algumas das preocupações que os sectores fornecedores foram apresentando ao logo do processo de elaboração do novo diploma e em alguns aspectos a solução encontrada não nos parece a mais acertada. Assim, e em resumo, o novo Decreto-Lei apresenta, em nossa opinião, as seguintes lacunas:

  • é apenas aplicável às empresas estabelecidas no território nacional, podendo penalizar os fornecedores portugueses, caso os distribuidores, para contornarem as novas obrigações legais, optarem por fornecedores externos;
  • não inclui qualquer disposição relativa a discriminação não objectiva entre marcas nem em relação à regulação da presença no mercado das chamadas ‘marcas brancas’;
  • concede um período excessivo para a revisão obrigatória/cessação dos contratos de fornecimento vigentes à data de entrada em vigor do novo diploma: 12 meses
  • introduz disposições que diluem o efeito dos Descontos Diferidos para efeitos de aplicação do Regime de Vendas com Prejuízo [para efeito de cálculo do correspondente preços de venda, os descontos diferidos são imputados à quantidade vendida - do mesmo produto e do mesmo fornecedor - nos últimos 30 dias], introduzindo, para além disso, desigualdade de tratamento face aos Descontos Directos;
  • aplica apenas às micro ou pequenas empresas, organizações de produtores ou cooperativas, exclusivamente do sector agroalimentar, a proibição absoluta de um conjunto relativamente amplo de práticas negociais abusivas.

Para o fim, ficam uma interrogação e uma constatação que emergem do novo diploma. Assim:

  • a interrogação refere-se à capacidade actual, em termos de recursos humanos e técnicos, da parte da ASAE para efectivamente implementar, monitorizar, fiscalizar e aplicar a nova legislação:
  • a constatação passa pela introdução de um mecanismo de avaliação – da responsabilidade da DGAE – e acompanhamento da aplicação do novo diploma, sendo que se solicita, desde logo, a avaliação do mecanismo previsto para verificação da venda com prejuízo nos casos de descontos diferidos, o que, simultaneamente, parece demonstrar a desconfiança do Executivo relativamente à solução jurídica encontrada para o caso dos chamados ‘descontos-em-cartão’ e a introdução de um mecanismo dinâmico de revisão da própria legislação. 

Em conclusão, no próximo dia 25 de Fevereiro entra em vigor um diploma que representa – apesar das limitações apontadas – um claro avanço no esforço de reequilíbrio e de dotação de maior equidade e transparência nas relações entre fornecedores e distribuidores. Tão ou mais importante que o reforço da penalização de comportamentos indevidos, é o poder dissuasor que o novo quadro legislativo introduz.

A aprovação deste novo diploma marca não o fecho do processo, mas apenas e só o fim de uma etapa, sendo que há que manter uma atitude fortemente proactiva em relação à respectiva implementação, persistir na correcção de algumas disposições que consideramos manterem-se inadequadas e apostar no colmatar de lacunas e questões que o diploma deixou em aberto.

Estão, entretanto, criadas as condições para que um novo instrumento de autorregulação seja efectivamente desenhado, pelo que esse é – sem dúvida – o próximo desafio que se coloca a todos os parceiros em sede de PARCA: estabelecer um consenso quanto a um Código de Boas Práticas Comerciais, adequado à realidade do mercado nacional, dotado de equilíbrio, equidade e eficácia.

Acima de tudo, estou certo que nenhum fornecedor desejará que, na prática, o novo e pesado quadro contra-ordenacional seja efectivamente aplicado, porque o seu maior desejo será que a nova legislação consiga induzir uma nova forma de relacionamento e um novo conjunto de práticas nas relações entre produtores e distribuidores.

 

Pedro Pimentel

Centromarca

Director-Geral  


Data de publicação: 03/01/2014 08:37