Artigos Técnicos

Qualidade da carne de bovino

 

Desde tempos remotos que a carne desempenha um papel importante na dieta e na cultura de civilizações. A sua importância deriva das suas características organoléticas e do seu elevado valor nutritivo (Hultin, 1993).

O termo "carne" pode ser definido como o produto resultante das mudanças contínuas que afetam o músculo após a morte. Na verdade, o conceito de equivalência entre a carne e o tecido muscular não é válido, porque quando ingerimos carne estamos a incluir quantidades não desvalorizáveis de tecido gordo e conjuntivo, tecidos, que desempenham um papel fundamental nas suas características organoléticas.

 

Qualidade da carne

A motivação do consumidor sobre as preferências alimentares, nem sempre coincide com as regras alimentares, uma vez que é regida pelas necessidades fisiológicas (apetite/fome), prazer sensorial (sabor, cheiro), prazer psicológico (promoção, distinção social), qualidade de vida e o preço (economia de tempo e esforço na confeção de alimentos para a família) e pelo receio a doenças do foro cardiovascular (hipertensão e obesidade) (Sanchez, 2000).

Hofmann (1990), distingue a qualidade da carne e a carne de qualidade, relacionando o primeiro conceito com caraterísticas objetivas (sensoriais, nutricionais, higiénicas, tecnológicas e toxicológicas) e o segundo com as subjetivas da carne (apreciação dos consumidores). Para o consumidor a qualidade é definida pelos seguintes fatores: aspeto, composição, caraterísticas organoléticas, preço e marca (denominações de origem) (Carballo et al., 2000). Sánchez (2002) destaca as culinárias e sensoriais (cor, maciez, suculência) e as propriedades nutricionais (composição e tipo de ácidos gordos, vitaminas e minerais).

No âmbito dos alimentos, a qualidade pode ser definida como o conjunto de atributos que caraterizam um alimento e que em última análise são os que determinam se é ou não aceite pelos consumidores (García, 2001). 

González (2002) entende por "carne de qualidade ", não apenas o produto em si, mas todo o processo de produção. Num estudo para avaliar a percepção dos consumidores em relação à qualidade da carne foi verificada a dificuldade que os consumidores têm de o efectuar (Grunert et al., 2004). Outras expectativas constituem um paradigma para os produtores: Como exemplo, pode referir-se que um certo grau de marmoreado (Hoshino et al., 1990), contribui para melhorar o sabor, a tenrura e a suculência, quando os consumidores consideram que o marmoreado prejudica os referidos atributos e a saúde (Issanchou , 1996).

De acordo com diferentes critérios, como a qualidade higiénica, o valor nutritivo e as caraterísticas organolépticas, o termo "qualidade da carne" apresenta distintas interpretações para o consumidor (Ouali, 1991; Mohino, 1993; Bonneau et al, 1996):

- Qualidade hígio-sanitária: Como requisito essencial, o consumo de alimentos não deve comprometer a saúde dos consumidores. Refere-se à ausência de substâncias tóxicas e agentes patogénicos e/ou deterioração na carne (Gracey , 1989; Herrera , 1991). A carne, pelo seu elevado teor de água, de proteína e de gordura, é um substrato favorável ao crescimento microbiano (Martins, 1992).

Além dos agentes biológicos, devem ser considerados os resíduos potencialmente tóxicos tais como pesticidas, metais pesados, promotores de crescimento e antibióticos.

A qualidade higío-sanitária é obrigatória e é estabelecida através de controlos oficiais e do controlo de pontos críticos na indústria alimentar. 

- Qualidade comercial, sensorial ou organolética: são avaliados atributos como o aspecto (proporção de carne magra e gordura, cor da gordura, marmoreado e exsudado), sabor, aroma, dureza e suculência (Boccard , 1992).

- Qualidade da apresentação: Mudanças na apresentação dos cortes tradicionais ou o desenvolvimento de novos produtos, podem variar a intenção de aquisição num determinado momento.

- Qualidade subjetiva ou imaginária: Relacionada com caraterísticas dificilmente mensuráveis, mas relacionadas com a imagem pré-estabelecida de um produto, as tendências de consumo, os hábitos adquiridos, as proibições religiosas, etc .

- Qualidade nutricional: garante a presença de componentes nutricionais (água, proteína, aminoácidos essenciais, ácidos gordos e minerais) e o seu uso adequado (Dumont, 1981). Estuda ainda o valor biológico da proteína da carne (PER - Protein Efficiency Ratio; NPU - Net Protein Utilisation) e a existência e o conteúdo de fatores de risco conhecidos (como colesterinas) ou a interação dos vários componentes cárnicos e o seu efeito sobre o valor nutricional (produtos da reação de Maillard).

- Qualidade tecnológica ou funcional: Refere-se às propriedades funcionais, estabilidade e adequação para processamento e conservação (Monin, 1983; Sellier , 1988; Wal , 1991), tais como garantir a capacidade para ligar a gordura e formar emulsões estáveis.

- Qualidade de serviço: Nela se inclui a facilidade de utilização, a aptidão culinária, o preço, apresentação, etc. Em numerosas ocasiões, na ausência de outros indicadores mais fiáveis, os consumidores usam o preço para inferir a qualidade do produto, de modo que quanto maior o preço, maior a expetativa de qualidade.

- Qualidade simbólica: Refere-se a factores de natureza psicológica, facilidade de uso, tradição, hábitos de consumo, etc .

Resumidamente (Sánchez, 2000) refere que o consumidor está particularmente interessado nas características intrínsecas de carne : a) possuir pouca gordura e uma cor desejável; b) que se cozinhe rapidamente; c) que seja tenra; d) que seja suculenta e saborosa.

 

Atributos de qualidade da carne

A qualidade da carne de vaca é determinada por um certo número de atributos intrínsecos, tais como pH, cor, as perdas de água por gotejo, cocção, por pressão, tenrura, grau de marmoreado, suculência, aroma e sabor e compostos nutricionais benéficos como os ácidos gordos ou ferro. O consumidor utiliza ainda outros atributos extrínsecos, para avaliar a qualidade da carne, sendo os mais relevantes: o estabelecimento, as marcas, o preço, apresentação e promoção, utilizando estes indicadores de qualidade, quando se desconhecem outros dados importantes como: raça, sexo, idade, condições de abate, etc., que são os que afectam diretamente os atributos de qualidade.

 

pH

O pH influencia a conservação, as propriedades tecnológicas (Fuster, 2002) e a qualidade de vários tipos de carnes (Young et al., 2004). É a medida mais objectiva, mais fiável (Barriada, 1995) e a mais utilizada para avaliar a qualidade da carne fresca, uma vez que o valor de pH final (medido às 24 horas após o abate), a duração e a velocidade de queda determinam diretamente outros atributos físicos de qualidade da carne (cor, capacidade de retenção de água, dureza) (Hofmann, 1990; Dikeman, 1991; Beltrán et al., 1997; Moreno et al., 1999; Page et al., 2001). Na carne bovina, esta medida ajuda a determinar possíveis carnes DFD (Garrido e Banon, 2000; Young e Gregory, 2001).

Valores de pH final no intervalo entre 5,40 e 5,59 (Lawrie, 1958; Tarrant e Mothersill, 1977), ou entre 5,4 e 5,7 (Boccard e Fronteiras, 1986; Renerre, 1986; Wythes et al., 1989; Guhe et al., 1990; Purchas e Wilkins, 1995), são considerados normais.

Os fatores determinantes do pH final e da sua evolução são: o glicogénio muscular, que afecta a quantidade de ácido láctico formada, a temperatura do músculo, que se for elevada ativará o metabolismo muscular, resultando no consumo de glicogénio. A ausência de oxigénio e consequente acidificação muscular antes do abate, as situações causadas por excesso de exercício, stresse e a atividade enzimática determinará a glicogenólise e a glucólise (Fuster , 2002; Prates , 2000).

 

Cor

A cor da carne é um dos atributos mais valorizados pelo consumidor no momento da compra. A carne vermelha brilhante é geralmente considerado mais atrativa e mais fresca do que cor avermelhada escura (Dumont , 1981; Beriain e Lizaso, 1997) , no entanto , as preferências dependem de fatores geográficos , sociais e culturais (Killinger et al., 2004). 

Na análise física da cor, o sistema mais utilizado é o CIELAB ou CIE L * a * b * proposto pela Commission Internationale de l' Eclairage (CIE, 1976), que define a cor usando um espaço tridimensional com as coordenadas L* (luminosidade), a* (índice de vermelho) e b* (índice de amarele).

As variações na luminosidade, no caso de carne, estão relacionadas com o seu estado físico e são devidas ao pH final do músculo, ao grau de hidratação, à estrutura das fibras musculares e à cinética de instalação do rigor mortis (Sañudo et al., 1990). No que se refere à cor da gordura existem certas preferências regionais ou étnicas. As variações mais comuns de cor variam desde o branco-pérola de bovinos jovens ou alimentados com ração, ao amarelo nos animais mais velhos ou alimentados em pastoreio (Jay e Fox, 1994).

 

Capacidade de retenção da água

A capacidade de retenção de água (CRA) foi descrita por Hamm (1960), como a capacidade que a carne tem para reter a sua água constitutiva durante a aplicação de forças externas (compressão, impacto) durante um determinado processo (maturação, cozinhado, congelação), sendo as proteínas o principal componente responsável da sua fixação (Wismer-Pedersen, 1986).

A água do músculo (aproximadamente 75% do peso total) pode classificar-se, dependendo do tipo de união às proteínas musculares, em três grupos: a água de constituição, a água ligada (5 a 10%) e a água livre (90 a 95%) (Honikel y Hamm, 1994; Wismer-Pedersen, 1994). 

As perdas de água por enxugo da carne são causadas pela contração das miofibrilas assim como do perimísio e do endomísio (tecidos conjuntivos que rodeiam as miofibrilhas), perda de ligação entre o fluido ao longo do espaço entre as fibras e a perda de força até ao fim do corte da carne (Offer et al., 1984).

A um maior grau de contracção miofibrilhar corresponde um maior exsudado. A contração ocorre durante a conversão do músculo ema carne, quando o ATP se consome e se formam ligações cruzados entre os miofilamentos (Davey , 1984) originando a actomiosina. Além disso, o pH cai no músculo, desde o valor neutro com o animal vivo, até cerca de 5,5 quando se estabelece o rigor mortis, o que provoca uma diminuição das cargas negativas sobre os filamentos, e uma redução na repulsão electronegativa entre eles (Hamm, 1975; Offer et al., 1984), tornando a capacidade de retenção de água mínima (Weber e Meyer, 1933). Por isso a tendência para a produção de exsudado é inerente à carne fresca, sendo difícil de eliminar. A quantidade de exsudado será menor se o pH final for elevado (Empey, 1933). Igualmente quanto maior for a temperatura, durante a glicólise post-mortem, tanto maior o grau de retração das proteínas miofibrilares, durante o início do rigor mortis e maior o grau de precipitação de proteínas sarcoplasmáticas. Quando estes fatores se combinam (carnes PSE carne), a exsudação da carne será ainda mais intensa (Lawrie, 1966).

A CRA é um atributo intimamente relacionado com as propriedades tecnológicas e sensoriais da carne (López , 1992; Fuster, 2002), especialmente com a suculência (Journe e Teissier , 1982). Esta é definida como a quantidade de líquido que se desprende da carne durante a mastigação (Ritchey e Hostetler, 1964), podendo ser dividida em duas sensações (Geay et al., 2002); a primeira corresponde à impressão de liquido apreendida quando se inicia a mastigação, que é originada pela rápida saída de suco da carne, e a segunda à sensação permanente de suco, devido à saída lenta de água de constituição, firmemente ligada às proteínas, e ao efeito estimulante que exerce a gordura sobre a salivação (Journe e Tessier, 1982; Cruz, 1994). A suculência inicial depende da capacidade de retenção de água da carne, e a suculência continua determinada pelo teor de gordura da carne (Ciria e Asenjo , 2000).

A suculência da carne é igualmente aumentada pelo marmoreado já que com a preparação culinária a gordura é fundida, distribuindo-se uniformemente ao longo das bandas do perimísio do tecido conjuntivo, criando desse modo uma camada que impede a perda de humidade. Assim, a carne com marmoreado apresenta-se mais suculenta (Hornstein et al., 1960).

Por tudo o que foi referido, a capacidade de retenção de água é um atributo de qualidade de elevado interesse económico e sensorial para a conservação, cozimento, processamento e consumo de carne. Carne com reduzida CRA produz maiores perdas durante a conservação, a desmancha e filetar, comprometendo a venda de pré-embalados. Uma rápida saída de suco durante a cozedura, agravada pela contração do colágeno a 65°C e pela desnaturação proteica pode causar perdas até 50% e as perdas de exsudados com substâncias hidrossolúveis, vitaminas e proteínas sarcoplasmáticas causando diminuição do valor nutritivo, carne seca e, portanto, menos tenra durante a mastigação. Igualmente a carne com reduzida CRA pode indicar a possível existência de tratamento fraudulento, por uma perda de enxugo da carcaça, com o valor normal de 2%, mas que pode atingir os 5-7%.

 

Tenrura

O conceito de textura pode ser definido como o conjunto de propriedades físicas que surgem da estrutura do alimento. Szczesniak (1963) definiu como a manifestação da estrutura sensorial dos alimentos e a forma da sua reação contra aplicação de forças. No caso da carne a sensação mais importante é a da dureza-tenrura.

Pode afirmar-se que a ternura é a facilidade com que a carne se deixa mastigar e, consequentemente a dureza e a resistência ao corte. Do ponto de vista do consumidor a tenrura pode dividir-se em três sensações: a facilidade inicial à penetração e ao corte, a resistência que oferece à rutura ao longo de mastigação e sensação do resíduo final (Weir, 1960).

Para o consumidor, a tenrura é um atributo de qualidade que apresenta um especial interesse (Preston e Willis, 1970; Ouali, 1990; Cabrero, 1991; Savell e Shackelford, 1992; Dransfield, 1994a e b; Warkup et al., 1995; Bonneau et al., 1996; Takahashi, 1996; Tornberg, 1996; Prates, 2000; Sánchez, 2000; Belk et al., 2001; Platter et al., 2005) sendo, com a cor, o atributo que condiciona em maior medida a aceitação da carne fresca, e afetar outras características sensoriais, como o flavor, que somente pode ser apreciado a partir de limiar mínimo de tenrura.

Além disso a ternura influencia diretamente o preço da peça carne, sendo as regiões mais caras, as que por serem mais tenras, têm maior capacidade para se cozinhar pelos métodos mais rápidos como o fritar (Cole, 1979). Num estudo realizado entre os consumidores norte-americanos constatou-se a disponibilidade para pagar mais por carne mais tenra (Miller et al., 2001).

Um dos principais problemas com que se debate a indústria da carne (Morgan et al., 1991 e 1992; Savell e Shackelford, 1992; Koohmaraie, 1996; George et al., 2001; Jeremiah et al., 2003) consiste na heterogeneidade da tenrura da carne, devida a uma combinação da nossa incapacidade para produzir sistematicamente carne tenra (Koohmaraie, 1996). Este facto influi no consumo da carne, estando este disposto a pagar pela segurança do que vai consumir, e isso é esperado em relação à tenrura (Boleman et al., 1995).

A tenrura da carne é influenciada pelas proteínas musculares (miofibrilares e sarcoplasmáticas) e em maior medida pelas proteínas do tecido conjuntivo (colagéneo, elastina e reticulina), sem ter que se esquecer de outros fatores importantes, como a gordura intramuscular, a estrutura do tecido conjuntivo, o tamanho dos feixes de fibras musculares, o estado de rigidez e capacidade de retenção de água.

Quanto maior o tempo decorrido após o abate maior será a tenrura da carne, com uma perda progressiva da fibrosidade, que contribuirá para uma melhor apreciação global da mesma, relativamente à que sofreu um período de maturação mais curto antes do consumo (Campo et al., 1999). O método mais simples e melhor documentado para melhorar, mas não diminuir a inconsistência na tenrura da carne é garantir que a carne não seja consumida sem uma maturação adequada (Koohmaraie, 1996).

 

Composição química da carne

A composição da carne tem especial relevância na qualidade de este produto alimentar, sendo um componente importante da dieta humana, conferindo uma ampla variedade de nutrientes: proteínas, gorduras, agua, minerais e vitaminas (Oliván et al., 2000). Estudos revelam que certos ácidos gordos da carne podem ter um efeito muito favorável na saúde humana. Para além disso, a carne de ruminantes constitui uma fonte importante de ácidos aminados indispensáveis e uma fonte de ferro hemínico, 3 a 4 vezes mais importante respetivamente, que as carnes de suínos e aves (Geay et al., 2002). Não obstante, contém elementos com conotação negativa para a saúde como são a gordura, ácidos gordos saturados, colesterol, sal, etc. (Jiménez-Colmenero e Cofradez, 2001). 

A composição do músculo magro é relativamente constante em relação ao teor de água, proteína, gordura e minerais, independentemente da espécie animal em questão (Rice, 1976). O componente principal é água seguida por proteínas e em seguida, por ordem de importância, são lípidos, substâncias azotadas não proteicos, hidratos de carbono e componentes inorgânicos.

Em geral, o principal componente maioritário da carne, a parte muscular, contem cerca de 75% de água, 19% de proteína, 3,5% de substâncias solúveis não proteicas e 2,5% de gordura (Lawrie, 1991), ou 75-76% de água, 21-22% de proteínas, 1-2% de matéria gorda, 1% de substâncias minerais e menos de 1,5% de hidratos de carbono (Sañudo et al., 1999).

As quantidades podem variar dependendo de um número de factores, uma vez que é necessário considerar que a carne é o reflexo postmortem de um sistema biológico complicado.

 

 

José Pedro Araújo

Escola Superior Agrária Ponte Lima, IP Viana Castelo, Portugal.

Centro de Investigação de Montanha (CIMO)

pedropi@esa.ipvc.pt


Data de publicação: 13/02/2014 00:00